quinta-feira, 3 de março de 2016

A escola deve assumir o papel de autoridade na vida das crianças?

Olá, 

Neste artigo, pretendo pensar no papel da escola como lugar de autoridade em que os pais confiaram à educação de seus filhos esperando que suprisse a necessidade de tais limites que não conseguiram impor aos mesmos em casa, no conturbado seio familiar, já discutido anteriormente.
Segundo Maria Rita Kehl, o papel que a família deve desempenhar na constituição do sujeito se resume em interditar o incesto e promover a sexuação. A partir deste ponto, o papel da família na modernidade é formador, no sentido de preparar as crianças para as suas responsabilidades em relação ás normas de convívio social.
É na estrutura familiar que a criança vai se indagar sobre o desejo que a constituiu - o desejo do outro - e vai se deparar com o enigma de seu próprio desejo. É nesse percurso que ela vai se tornar um ser de linguagem, barrado em relação ao gozo do outro, percurso este, suficiente para constituir seres humanos orientados pela lei que interdita o incesto, que exige de cada sujeito a renúncia a uma parcela de seu gozo para pertencer à comunidade humana.
A dissolução do espaço público em vários países do ocidente e a passagem de uma ética da produção para uma ética do consumo, entre outros fatores, são os grandes responsáveis pela desmoralização da transmissão familiar dos valores, e não o contrário. A escola, então, passa a ganhar o lugar anteriormente ocupado pelo espaço público, a rua. A criança tem toda a sua experiência extra-familiar na escola.
As dificuldades que os pais têm tido em sustentar sua posição de autoridade responsável perante as crianças demonstra um peso de dívida destes adultos para com o antigo modelo de família patriarcal, a que me referi anteriormente. Esta dívida impede que os adultos legitimem suas funções no âmbito das estruturas familiares que eles foram capazes de construir. Sejam elas como forem, cabe aos adultos que assumiram o encargo das crianças o risco e a responsabilidade de educá-las. O peso da dívida faz com que estes adultos se sintam incapazes de impor as restrições necessárias a um processo educativo.
A esta dívida se contrapõe o descompromisso crescente da sociedade contemporânea em relação a todas as tradições, inclusive com a família patriarcal. A mesma cultura que nos incita a viver de maneira radicalmente diferente das escolhas de nossos pais, não é capaz de legitimar as novas configurações familiares que foram surgindo. Assim, homens e mulheres se vêem na contingência de impor limites e transmitir ideais aos seus filhos por sua conta e risco. Essa relatividade na interpretação das responsabilidades permite uma grande liberdade de invenção e angústia. A nostalgia da família tradicional perdida talvez venha como busca de uma referência que compense tamanho desamparo.
Deste lugar mal sustentado em que os adultos se encontram, é possível também que eles não compreendam no que consiste sua única e radical diferença em relação às crianças - a diferença dos lugares geracionais. Segundo Kehl, é porque ocupam as funções de pai e mãe que os pais estão socialmente autorizados a mandar nas crianças.
Encontramos na clínica pais e mães que afirmam não conseguir impor limites a seus filhos porque eles não deixam. São adultos desnorteados que desconhecem os fundamentos simbólicos de sua autoridade. A recusa dos pais a correr este risco coloca a criança no estado de abandono, sofrido pelas crianças mimadas de hoje já que o adulto responsável não banca sua diferença diante delas.
Ninguém quer errar e por isso ninguém se arrisca a contrariar os desejos de uma criança que representa a realização de uma perfeição impossível e imperativa.
Fora a interdição do incesto e a promoção da sexuação, sabemos que todos os outros "papéis" na formação da criança são substituíveis - por isso é que os chamamos de papéis. "O que é insubstituível é um olhar de adulto sobre a criança, a um só tempo amoroso e responsável, desejante de que esta criança exista e seja feliz na medida do possível - mas não a qualquer preço. Insubstituível é o desejo do adulto que confere um lugar a este pequeno ser, concomitante com a responsabilidade que impõe os limites deste lugar. Isto é que é necessário para que a família contemporânea, com todos os seus tentáculos, possa transmitir parâmetros éticos para as novas gerações.".
Vamos passar agora, do âmbito da família para a visão de um educador, sobre a autoridade na escola. Yves de La Taille diz que, num passado não muito distante, as três fontes de autoridade na escola eram: a autoridade que os pais conferiam aos professores, até mesmo para ministrarem castigos físicos, o fato de a escola ser vista como legítima representante de valores compartilhados por toda a sociedade e o fato de a escola ser o único lugar onde era possível ter acesso ao patrimônio cultural.
A crise na educação, para o autor, teria a ver com a democratização do espaço escolar que tirou dos professores a autoridade conferida pelos pais, que já não bancam a própria e, portanto, não conseguem atribuí-la a um substituto. Para Taille, a educação está melhor a partir destas práticas democráticas, pois é possível respeitar e levar em consideração a opinião dos alunos.
Ao mesmo tempo, precisamos pensar que estas práticas não vieram sozinhas, mas acompanhadas de uma série de outros fatores da cultura, que elencamos no capítulo anterior, entre eles o consumismo, a comunicação mais abrangente do mundo da informação e o individualismo. Fatores estes, que aproveitaram o espaço promovido pela democracia nas escolas para trazer novas condutas que invertem os papéis entre professor e aluno, ao invés de promover uma igualdade. O despotismo autoritário do aluno, insatisfeito com a escola que, como os pais, não lhe dá limites, mina a relação com o professor.
Hanna Arendt em seu livro "Entre o passado e o futuro", de 1968, coloca uma reflexão muito interessante sobre esta crise na educação e nos coloca outros elementos a considerar ao redor do tema. Também para ela, é a democracia que vai mudar o lugar de autoridade do professor em relação ao aluno, anteriormente incontestável.
Vamos elencar em contrapartida com as fontes de autoridade em que a educação se baseava anteriormente descritas por Taille, três fatores que, segundo Arendt, baseiam a educação atual e que têm a ver com esta crise: em primeiro lugar, ela cita a separação do mundo da criança do mundo do adulto, pensando a criança e o seu grupo como seres autônomos e o professor como um mero auxiliar para elas. Neste fator, a autoridade existente é a do grupo ao qual a criança pertence - a maioria vence.
Em segundo lugar, a autora fala da influência da psicologia moderna na educação, que propôs à pedagogia ser um domínio geral e que o professor não se especializasse mais no conteúdo. O terceiro fator é que o professor deveria aprender continuamente e não reproduzir um aprendizado já enrijecido ao aluno, fator que justifica a pouca ênfase dada agora ao conteúdo. A questão é, que a autoridade do professor se baseia na diferença básica entre ele e a criança que é, além da geracionalidade (na caso das crianças pequenas), também o conhecimento que ele tem para passar para o aluno. Tirando o conteúdo do professor, a sua diferença praticamente some, e o fundamento de sua autoridade, também.
Além disso, para Arendt, a essência da educação é o fato de que "os seres nascem para o mundo." O educador está representando este mundo e deve assumir responsabilidade por ele, embora possa ter críticas a respeito dele. Na educação, essa responsabilidade pelo mundo assume a forma de autoridade. E a crise se explica porque os adultos estão se recusando a assumir a responsabilidade pelo mundo ao qual trouxeram as crianças.
Arendt coloca finalmente a questão em um parágrafo muito ilustrativo da postura que se vê hoje nos pais e explica essa postura por sua teoria: "A perda geral de autoridade, de fato, não poderia encontrar expressão mais radical do que sua intrusão na esfera pré-política, em que a autoridade parecia ser ditada pela própria natureza e independer de todas as mudanças históricas e condições políticas. O homem moderno, por outro lado, não poderia encontrar nenhuma expressão mais clara para sua insatisfação com o mundo, para seu desgosto com o estado das coisas, que sua recusa a assumir, em relação às crianças, a responsabilidade por tudo isso. É como se os pais dissessem todos os dias: - Nesse mundo, mesmo nós não estamos muito a salvo em casa; como se movimentar nele, o que saber, quais habilidades dominar, tudo isso também são mistérios para nós. Vocês devem tentar entender isso do jeito que puderem; em todo caso, vocês não tem o direito de exigir satisfações. Somos inocentes, lavamos as nossas mãos por vocês.".
Aqui, ela diz dos pais e de sua necessidade de não mais assumir a tamanha responsabilidade de apresentar o mundo tal qual está às crianças recém-chegadas. Do mesmo modo, podemos pensar que os professores se colocam no mesmo lugar dos pais e tentam também não assumir a responsabilidade por apresentar este mundo. A informação está cada vez mais acessível às crianças e os professores podem ajudar nesta busca, mas não estão conseguindo guiá-los em outros aspectos que a família já não banca: a socialização primária, os interditos mais primitivos que constituem o sujeito enquanto ser humano, pois sentem (com razão) que este papel não lhes é possível exercer.

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Um abraço,
Carol

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